Clima em crise e desastres naturais: onde foi que nós erramos?

26/06/2024


Atualizado em 26/06/2024  |  por Equipe OICS

A crise climática não é mais uma previsão, uma ameaça distante ou uma preocupação para as próximas gerações. A crise climática é uma realidade, e está acontecendo agora mesmo. Durante décadas, fomos alertados sobre as consequências catastróficas de nossas ações, no entanto, o negacionismo e os modelos de desenvolvimento econômico predatórios prevaleceram e nos trouxeram até aqui. O resultado é evidente: o mundo que conhecíamos está desaparecendo diante de nossos olhos, consumido pelas chamas dos incêndios, afogado pelas enchentes e sufocado pela poluição.

O ano de 2023 foi marcado por uma série de desastres naturais. Conforme relatórios do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), 1.161 eventos registrados, sendo 716 associados a eventos hidrológicos e 445 de origem geológica. Significa que o país enfrentou uma média alarmante de três desastres por dia. Os impactos desses eventos não se limitaram apenas às estatísticas, mas deixaram uma trágica marca na população, com 132 mortes, 9.263 pessoas feridas ou enfermas e cerca de 74 mil desabrigados.

Atualmente, o estado do Rio Grande do Sul enfrenta uma das mais devastadoras catástrofes ambientais já testemunhadas em solo brasileiro. Desde o final de abril, fortes temporais têm assolado as cidades gaúchas, deixando um rastro de destruição e desespero. Mais de um milhão de pessoas afetadas, milhares de desaparecidos, desabrigados e mortos. Relatos angustiantes de pessoas sendo obrigadas a abandonar suas casas no meio da noite, perdendo não só seus lares, mas tudo que construíram ao longo de anos.

Até a manhã da última sexta-feira (10/5), a Defesa Civil do Rio Grande do Sul reportou que havia chegado a 116 o número de pessoas mortas em decorrência das enchentes, 756 feridos e 143 desaparecidos. No entanto, a circulação de notícias falsas e a dificuldade de verificação de dados em em um contexto de escassez de notícias locais torna cada vez mais desafiador saber no que acreditar.

No momento, nada pode ser feito para evitar as inevitáveis enchentes que vão ocorrer nas próximas semanas, uma vez que a chuva não tem previsão de diminuir. Por enquanto, a gente se junta para ajudar como pode. Doações de água, alimentos não perecíveis, materiais de limpeza e de higiene pessoal, roupas, calçados e cobertores são muito bem-vindos.

Mas a pergunta que emerge e para a qual eu abro espaço é: o que, então, poderia ter sido feito antes? Afinal, é possível evitar as catástrofes naturais? O que está e o que não está no nosso controle?

“É como se todas as vezes nós estivéssemos sendo pegos desprevenidos”

O que tem em comum com os episódios ocorridos em Petrópolis/RJ, São Sebastião/SP, Belo Horizonte/MG, Recife/PE e em tantas cidades do Rio Grande do Sul hoje? Todas seguem a mesma receita: foram eventos extremos que causaram muito impacto. É o que acredita o Dr. Osvaldo Luiz Leal de Moraes, físico, especialista em desastres naturais e Diretor do Departamento para o Clima e Sustentabilidade da Secretaria de Políticas e Programas Estratégicos (SEPPE), do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI).

Segundo o especialista, o Brasil tem a capacidade de monitorar e prever os desastres e seus impactos, bem como a de fazer a disseminação dos alertas desses eventos extremos. Mas então, por que eles continuam acontecendo? “Um desastre é uma combinação de duas ameaças: a ameaça da natureza e a ameaça antrópica”, explica. Significa dizer que não temos controle algum no que se diz respeito às forças da natureza.

“Os eventos da natureza, nós não temos nenhuma capacidade de alterar. Mesmo que nós não estivéssemos vivendo uma sequência de eventos extremos devido às mudanças climáticas, eles continuariam acontecendo. Talvez não tão intensos, e talvez não tão frequentes como a gente vê. Mas eles continuariam acontecendo porque eles são produtos de uma força sobre a qual nós não temos nenhuma ingerência”.

Onde temos algum tipo de controle, então?

Bom, de acordo com o especialista, existem certas vulnerabilidades construídas pelo homem que, se não forem reduzidas, vai fazer com que nós continuemos lidando com esses eventos da mesma maneira que temos feito até agora. Como prioridade, ele menciona as vulnerabilidades sociais, que se manifestam por meio da desigualdade e da concentração de poder aquisitivo; as vulnerabilidades tecnológicas, que abrangem a falta de infraestrutura para o abastecimento de água e a fragilidade de rodovias e pontes; e as vulnerabilidades de comunicação, onde ele ressalta a importância de estabelecer um protocolo eficaz para comunicação entre os agentes públicos e a população.

Como complemento, no documento “Estratégias de Gestão de Riscos e Desastres”, elaborado pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA), é afirmado que a diminuição das desigualdades sociais é um dos motores principais para a redução das vulnerabilidades. “A desigualdade deve ser considerada em todos os recortes temáticos e reforçada em outros planos de governo, objetivando aumentar não somente a resiliência e capacidade adaptativa de grupos específicos, mas também a diminuição de todas as vulnerabilidades a esses grupos relacionadas”, consta.

Além disso, o Dr. Osvaldo lembra da importância em investir em educação para promover a conscientização e a preparação da população. 'Nós não educamos os jovens para conhecer e perceber o risco', lamenta. E reforça que a redução das vulnerabilidades antrópicas é fundamental para mitigar os impactos dos desastres naturais. 'Se nós não fizermos isso, esqueça. Daqui a 6 meses, tu vai estar me entrevistando e eu vou estar dizendo a mesma coisa”, alerta.

A mobilização e a solidariedade são suficientes?

A tragédia do RS parece ter despertado uma consciência coletiva sobre as mudanças climáticas e a agenda ambiental. Por um lado, em meio ao caos, surge um poderoso movimento de solidariedade. A população se reúne para ajudar. O Brasil se mobiliza para incentivar doações para organizações de caridade. Influenciadores digitais engajam em iniciativas para auxiliar as vítimas, desde parcerias com marcas até a organização de campanhas de arrecadação virtual. Vídeos informativos sobre mudanças climáticas estão por todo o lado. Deixamos de lado nossas diferenças para ajudar a salvar a vida de milhões de pessoas que estão sendo afetadas.

Por outro lado, será que sempre vamos precisar esperar um desastre acontecer para fazermos alguma coisa sobre? Será que esse movimento de solidariedade que emerge diante das tragédias ambientais não se repete como um padrão previsível? A reflexão sobre essa questão nos leva a pensar na recorrência de um ciclo vicioso, no qual a mobilização e a solidariedade emergem apenas em resposta imediata aos eventos catastróficos, para depois se dissiparem com o passar do tempo.

A solidariedade, para o físico, é uma qualidade inerente a todas as sociedades. "Todos os povos do mundo, em todas as situações, são solidários". A solidariedade, segundo ele, surge da capacidade humana de se indignar com situações que nos chocam, resultando em atos de apoio e assistência. É claro que as mobilizações e as doações são louváveis e necessárias. No entanto, a questão é se a solidariedade por si só é suficiente para resolver o problema. É preciso reconhecer que a solidariedade, embora valiosa, muitas vezes é uma resposta reativa a crises isoladas, e não uma solução abrangente para os desafios estruturais que contribuem para a ocorrência de desastres naturais.

“A indignação se traduz num ato de solidariedade. Ela é somente uma resposta. Não é um ato anterior, porque o ato anterior exigiria que nós mudássemos toda a nossa cultura. Nós temos hoje grande parte da riqueza do mundo concentrada em poucos indivíduos, e a grande miséria do mundo distribuída na maioria da população. Ou seja, isso é uma questão cultural. Nós não vamos mudar isso. Não acredito que isso vai acontecer”, diz o Dr. Osvaldo Luiz Leal de Moraes.

E o que podemos fazer para mitigar essas catástrofes?

Cada comunidade tem sua própria dinâmica, suas próprias necessidades e seus próprios desafios. Não existe uma solução única que sirva para todos os contextos. Por isso, impor medidas às comunidades afetadas não é o caminho. As políticas de enfrentamento de desastres precisam ser adaptadas e moldadas de acordo com as características locais e as demandas específicas de cada região.

Dito isso, não: a ideia que nos venderam sobre as ações individuais como comer menos carne, não jogar lixo no chão, ir de bicicleta para o trabalho, não irão evitar o colapso ambiental que já está batendo em nossas portas. A ação individual é necessária, porém, as grandes mudanças para fazer frente à emergência climática devem também partir de cima para baixo. E sem a aprovação de leis ambientais, monitoramento, verba, fiscalização e investimentos na prevenção de desastres climáticos, dificilmente o cenário irá mudar. 

Por isso, para o ex-diretor do Cemaden, uma possível mudança só poderia vir de uma pressão da própria comunidade local, enquanto o papel da sociedade civil seria auxiliar no empoderamento e na organização dessas comunidades. “Porque a comunidade local dá voto, entendeu? Então, então a gente precisa usar esse poder, esse temor do político de perder voto para pressioná-lo a tomar ações concretas”, conta o Dr. Osvaldo.

Aprendemos o que tínhamos que aprender?

Em meio ao caos e à tragédia, sabemos que é difícil manter a esperança. Mas talvez nem tudo esteja perdido, e é possível ver alguns avanços. Um ponto positivo é que, pela primeira vez, o Plano Nacional de Gestão de Riscos e Resposta a Desastres Naturais do Governo Federal está sendo elaborado. Dividido em 4 eixos, quais sejam: mapeamento; monitoramento e alerta; prevenção/infraestrutura; e resposta a desastres, o plano é coordenado pela Defesa Civil.

Para o Diretor de Clima do MCTI, o programa de gestão de risco precisará evoluir, incluindo metas, objetivos e indicadores, de forma que a gestão pública possa cobrar os resultados. Caso não coloquemos no papel as formas de mensuração e monitoramento das etapas do plano de gestão de riscos e respostas a desastres naturais, então demonstraremos que não aprendemos com tudo que já aconteceu. Desse modo, o especialista compreende que um programa de gestão de risco deveria ser centrado na Presidência da República, órgão que teria a capacidade de articular todos os entes federativos necessários para isso.

Os desastres naturais vão continuar acontecendo, porque existem regiões mais e menos suscetíveis a eles. O problema, para o físico, é que continuamos ocupando essas regiões que, consequentemente, continuam crescendo. Mas por que continuamos ocupando essas áreas, ao invés de ocuparmos lugares menos suscetíveis a desastres? De acordo com o Dr. Osvaldo, porque não tem esse incentivo. Em um mundo ideal, poderia haver uma política de incentivo para o setor industrial se estabelecer em novos locais em áreas menos suscetíveis, enquanto se diminui o poder e os benefícios econômicos para indústrias que continuam se instalando nesses locais.  

“Os desastres que vão ocasionar mudanças comportamentais ainda vão ocorrer. As mudanças das correntes oceânicas vão mudar a salinidade dos oceanos. Vai mudar a distribuição de calor entre os diferentes hemisférios. Vai mudar a distribuição de calor entre a latitude alta e a latitude baixa. Quando nós sentimos isso como um todo, bem, aí, quando todo mundo for atingido, a gente vai repensar. Enquanto eu olho, por exemplo, aqui no Brasil, um tsunami que acontece lá no Pacífico, eu me solidarizo, sabe? Faço um PIX, transfiro e sigo a minha vida normal. Agora, o dia que essas questões baterem na porta de todo mundo simultaneamente? Bem, então aí a gente vai ter que tomar uma decisão enquanto humanidade”.

Tudo está perdido?

A gestão de riscos e prevenção de catástrofes naturais é um assunto extremamente complexo. Não existe solução única. No fim, também precisamos entender que como indivíduos, temos limitações. Por ora, que ajudemos da forma que podemos. Que continuemos nos solidarizando com nossos vizinhos em momentos de dificuldade. Que façamos as doações. Que estudemos sobre o tema. Que, na medida do que é possível e da realidade de cada um de nós, levemos a luta ambiental mais a sério. A luta contra a desinformação. A luta contra a desigualdade. Se é nossa voz que deve ser usada, que falemos. Que gritemos, se for necessário. Mesmo que precisemos encontrar brechas para trazer esse assunto. Que nos posicionemos. Que nos mantenhamos informados. A informação é, agora mais do que nunca, nossa maior aliada. Que, mais do que qualquer coisa, olhemos para o problema.

Diferente dos demais textos dessa coluna, hoje não iremos listar soluções do banco de dados do OICS. Estamos falando de uma tragédia sem precedentes, fruto de modelos econômicos, de ocupação do território e de decisões estruturantes da forma como nossa sociedade vive e convive com a natureza. Não queremos romantizar esse momento, nem propor medidas paliativas. Queremos que enquanto sociedade, que a gente não desista. Continuemos lutando. Porque nem sempre vale a pena, mas vale algo. Tem que valer. 

Por: Ana Luiza Moraes