Por que a tragédia do RS nos obriga a pensar em cidades resilientes?

05/07/2024


Atualizado em 05/07/2024  |  por Equipe OICS

Os desastres naturais são eventos constantes que testam a capacidade de resiliência das cidades ao redor do mundo. Esses eventos, que incluem terremotos, furacões, inundações e tsunamis, têm o potencial não apenas de causar danos físicos significativos, mas também de expor vulnerabilidades estruturais e sociais enraizadas nas comunidades urbanas.

Desde o final de abril, o Rio Grande do Sul vive uma de suas piores crises de enchentes dos últimos tempos. As chuvas intensas deixaram um rastro de destruição em 478 municípios, impactando diretamente mais de 2 milhões de pessoas. Os números são alarmantes: 179 vidas perdidas, 806 feridos, 33 desaparecidos e mais de 422 mil desalojados*. Essa tragédia não só revela a dimensão do desastre, mas também ressalta a urgência de repensar a resiliência urbana diante dos desafios naturais.

Mas afinal, o que é resiliência urbana?

No mundo de hoje, falar de resiliência urbana vai além da simples reconstrução de edifícios depois de desastres naturais. Estamos falando da habilidade das cidades em se adaptarem, se recuperarem e se fortalecerem diante das adversidades. Isso inclui não só a reconstrução das infraestruturas danificadas, mas também a restauração de serviços essenciais, o apoio às comunidades afetadas e a capacidade de aprender com cada experiência para melhorar a preparação para futuros desafios.

No entanto, diante da recente crise no Rio Grande do Sul, vem o questionamento: nossas cidades estão verdadeiramente preparadas para enfrentar tais situações?

Planejamento urbano é suficiente?

Apesar dos esforços em políticas públicas e planejamento urbano, muitas cidades ainda carecem de infraestrutura adequada para lidar com os crescentes impactos das mudanças climáticas. O crescimento desordenado, a impermeabilização do solo e a falta de investimentos em infraestruturas resilientes são pontos críticos que amplificam os efeitos devastadores de desastres naturais como os observados no Rio Grande do Sul.

Programa Cidades Verdes Resilientes

Salomar Mafaldo de Amorim Junior, Coordenador-Geral de Cidades Sustentáveis do Ministério do Meio Ambiente (MMA), explica que, diante dos desafios climáticos crescentes e das responsabilidades globais, os ministérios têm unido esforços para construir uma estratégia federal que potencialize a atuação conjunta desses órgãos. "A falta de ações coordenadas e de direcionamento de recursos em prol da qualidade ambiental e da resiliência climática nas cidades brasileiras é um problema central", afirma.

O Programa Cidades Verdes Resilientes, de acordo com ele, adotará uma estratégia de governança compartilhada, com um comitê gestor interinstitucional que será instituído em breve. "O programa tem como objetivos específicos potencializar serviços ecossistêmicos nas cidades, propor normas para planejamento e gestão urbano-ambiental, desenvolver a capacidade institucional dos entes federativos e apoiar a pesquisa científica e soluções tecnológicas no desenvolvimento urbano sustentável", detalha.

Integração entre políticas públicas, setor privado e sociedade civil

Para promover mudanças reais, é essencial que as políticas públicas não apenas incentivem, mas também exijam a implementação de medidas que fortaleçam a resiliência urbana. Além de investimentos em infraestrutura verde, isso envolve também o planejamento cuidadoso do uso do solo e a promoção de práticas sustentáveis em todas as esferas da vida urbana.

A conscientização sobre os impactos das ações humanas no ambiente urbano e a colaboração entre governos, setor privado e sociedade civil são fundamentais para construir cidades mais seguras e preparadas para enfrentar futuras crises. "A expansão urbana sem planejamento adequado gera degradação social e ambiental, afetando a qualidade de vida da população", explica o especialista. Salomar destaca a importância das áreas verdes urbanas, que, além do aspecto contemplativo, oferecem serviços ecossistêmicos essenciais.

Ele também ressalta o papel dos comitês gestores de políticas públicas intersetoriais na promoção da cooperação entre diferentes setores da sociedade e órgãos governamentais. "Esses comitês facilitam a integração de esforços, ampliam a participação e representatividade, aumentam a eficiência e eficácia das políticas públicas e promovem a resolução de problemas complexos", observa.

Desigualdade e outros desafios

Os desafios enfrentados pelo MMA na promoção de práticas sustentáveis e infraestruturas resilientes são numerosos. "É essencial modernizar os aspectos normativos considerando a mudança climática no estatuto das cidades e nos instrumentos urbanos, como planos diretores municipais e leis de uso e ocupação do solo", pontua Salomar.

Para superar esses desafios, é necessário investir na infraestrutura verde das cidades e na distribuição igualitária de seus benefícios. "A infraestrutura verde inclui desde áreas verdes naturais até tetos verdes, jardins verticais e construções sustentáveis, promovendo sinergia e multiplicação de benefícios", diz.

Apesar das vantagens da infraestrutura verde, no Brasil, esses benefícios são distribuídos de forma desigual na malha urbana, frequentemente estratificados com base na renda, características étnico-raciais, idade, gênero e outras dimensões de análise. "Apoiar a gestão de áreas verdes urbanas nos municípios é um caminho claro para aumentar o equilíbrio ambiental e a qualidade de vida", conclui Salomar, destacando a importância de estratégias complementares como soluções baseadas na natureza, construções sustentáveis e uso racional dos recursos naturais.

Cidade-Esponja

O conceito de cidades-esponja surge como uma abordagem para fortalecer a resiliência urbana. Uma cidade-esponja é projetada para absorver, armazenar e gerenciar eficientemente a água das chuvas e inundações, reduzindo assim o risco de enchentes e melhorando a sustentabilidade ambiental. Estratégias como telhados verdes, pavimentos permeáveis, áreas de infiltração e parques de retenção são implementadas para mitigar o impacto das mudanças climáticas e promover um ambiente urbano mais adaptável e seguro.

Para implementar o conceito de cidade-esponja de forma eficaz, é necessário conter ou reverter o desmatamento nas encostas, restaurar as matas ciliares, manter a cobertura vegetal das encostas e topos de morro, recompor as planícies de inundação e adotar práticas de conservação de solo nas áreas agrícolas. Além disso, é fundamental combinar a infraestrutura verde com soluções da engenharia tradicional para criar um ambiente urbano menos vulnerável às mudanças climáticas.

Apesar dos desafios enfrentados por experiências anteriores, a expansão do conceito para outras regiões e a integração das soluções baseadas na natureza nas políticas públicas e práticas individuais são passos importantes para promover a resiliência das cidades diante dos eventos climáticos extremos. 

Zonas de gestão e centros de monitoramento

Outra solução que procura reduzir os danos causados por essas adversidades são as zonas de gestão e centros de monitoramento. Estes mecanismos de gestão de risco são ferramentas utilizadas para mapear os perigos, proteger as comunidades vulneráveis e aumentar a resiliência urbana. 

As zonas de gestão de risco são áreas identificadas através de mapas que mostram os limites e a vulnerabilidade a inundações e deslizamentos. Esses mapas viabilizam a visualização estratégica dos pontos críticos e ajudam na implementação de medidas de prevenção. Por meio dessas zonas, é possível aplicar soluções baseadas na natureza, como microrreservatórios, jardins de chuva e trincheiras de infiltração, que não só mitigam os riscos imediatos, mas também contribuem para a captura de carbono e a redução de gases de efeito estufa (GEE), atuando de maneira integrada na luta contra as mudanças climáticas.

Os centros de monitoramento complementam as zonas de gestão, oferecendo um controle sistemático e contínuo das áreas de risco. Eles desempenham um papel crucial ao fornecer dados em tempo real e alertas que ajudam na preparação e resposta rápida a eventos extremos. Equipados com tecnologia avançada, esses centros podem prever desastres iminentes e coordenar ações de emergência, minimizando os danos materiais e protegendo vidas humanas.

O Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), por exemplo, trabalha no monitoramento de ameaças da natureza e na previsão de eventos extremos. O centro monitora, 24 horas por dia, as áreas de risco de municípios classificados como vulneráveis a desastres naturais em todo o território nacional, o que torna possível a previsão de quando haverá algum evento hidrológico ou geodinâmico. Essa antecipação possibilita, então, que seja emitido um alerta aos órgãos competentes e às comunidades possivelmente afetadas para que tomem as medidas necessárias.

Avanços e desafios pendentes

A frequência crescente de eventos climáticos extremos no Brasil é um reflexo inequívoco das mudanças climáticas globais, como alertado pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC). Esses eventos, como as recentes inundações catastróficas no Rio Grande do Sul, ilustram de maneira clara e trágica os impactos devastadores que podem ocorrer quando não há preparo adequado.

Atualmente, a maioria das cidades brasileiras carece de planos climáticos robustos e estratégias eficazes de avaliação de risco e adaptação. Surpreendentemente, apenas 11 das 27 capitais do país possuem planos concluídos para enfrentar as mudanças climáticas, evidenciando uma lacuna significativa na preparação e na capacidade de resposta (Agência Câmara de Notícias, 28/05/2024).

Diante dessa urgência, iniciativas como o Plano Clima, em elaboração pelo governo federal, e a recente Lei 14.904/24, sancionada pelo presidente Lula, surgem como passos cruciais. Esta legislação estabelece diretrizes claras para a elaboração de planos de adaptação climática em níveis federal, estadual e municipal, garantindo uma abordagem integrada e participativa para enfrentar os desafios das mudanças climáticas.

Além disso, a proposta de lei da deputada Tábata Amaral, agora convertida na Lei 14.904/24, reforça a importância da cooperação entre os diversos setores da sociedade para promover a resiliência das cidades brasileiras diante das mudanças climáticas. No entanto, é importante destacar que, apesar desses avanços legislativos, a implementação efetiva desses planos ainda está em andamento, evidenciando um atraso preocupante diante da urgência climática.

Diante desses desafios, a tragédia no Rio Grande do Sul nos obriga a uma reflexão urgente sobre a necessidade de construir cidades resilientes e sustentáveis. A colaboração entre governos, setores sociais e econômicos se torna essencial para mitigar os impactos das mudanças climáticas e garantir um futuro mais seguro e sustentável para todos os brasileiros.

O OICS: 

Com o intuito de estimular a sustentabilidade urbana nas cidades brasileiras, o Observatório de Inovação para Cidades Sustentáveis (OICS) atua como uma plataforma de mapeamento e divulgação de soluções inovadoras e sustentáveis para desafios urbanos. Em meio a esse propósito, destaca-se o papel dos municípios como protagonistas na aplicação efetiva dessas soluções. O conhecimento aprofundado sobre alternativas para a inclusão da sustentabilidade no planejamento urbano é central para capacitar os gestores municipais a implementarem práticas mais sustentáveis em suas localidades. 

Caracterizadas de acordo com o território brasileiro, por meio de dados biogeofísicos e indicadores temáticos, as soluções e estudos de caso identificados pelo OICS são modelos replicáveis de alternativas sustentáveis para desafios urbanos. São divididas em seis grandes temas: ambiente construído; energia; mobilidade; saneamento ambiental – água; saneamento ambiental – resíduos sólidos e soluções baseadas na natureza. Para visitar a plataforma e conhecer mais sobre nossas soluções e estudos de caso, clique aqui.

*dados atualizados pela Defesa Civil do RS até o dia 1/7/2024

Por: Ana Luiza Moraes